Sabia que o seu voto pode não contar para nada?
Em 2011, mais de 512 mil votos foram ignorados
 e não elegeram deputados. Estudos mostram que as distorções no sistema 
eleitoral se agravaram. CONSULTE AS INFOGRAFIAS e perceba como é que isto acontece, onde e em prejuízo de que partidos
O sistema favorece os grandes. É uma frase de café, cunhada no futebol, 
mas aplica-se à democracia. Nas Legislativas de 2011, mais de meio 
milhão de eleitores ficou "fora de jogo". Foram cerca de 512 mil votos 
ignorados e valeram zero deputados.

Ora,  destes, mais de 51 por cento das cruzinhas nos boletins pertenciam
 a eleitores da CDU, BE e CDS-PP, enquanto 48,2 corresponderam a 
partidos sem assento parlamentar. Se fosse adotado um sistema eleitoral 
misto, com um círculo nacional extra, de compensação, o PAN e o MRPP 
teriam, por exemplo, convertido os mais de 120 mil votos que obtiveram 
em dois deputados para cada um (ver simulação). No outro extremo, PSD e 
PS perderam apenas trocos que não chegaram para lhes tirar o sono.

A história democrática não mente.
Desde as primeiras eleições, o bloco central nunca teve mais de 50 
mil votos desperdiçados, enquanto as forças de média dimensão registaram
 "mais de 300 mil", se contabilizarmos apenas uma amostra de três 
eleições (1975, 1987, 2005). Em quatro "legislativas", incluindo as 
últimas, um em cada dez cidadãos valeu... zero na conversão de votos em 
mandatos.
São exemplos das distorções do sistema eleitoral cujo agravamento vem
 sendo detetado por Luís Teixeira, mestre em Política Comparada do 
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Por isso, dia 4
 de outubro, quando formos às urnas, os partidos do Governo já estarão a
 ganhar. "Neste sistema, PSD e CDS saem claramente beneficiados por 
concorrerem coligados", garante o investigador, que atualizou os números
 para a VISÃO. 
"Os votos ignorados da coligação Portugal à Frente convertidos em 
mandatos - que iriam afetar sobretudo o CDS-PP enquanto partido médio - 
serão quase de certeza residuais ou até nulos". União de facto ou 
casamento de conveniência, a verdade é esta: o peso do PSD atenua as 
eventuais perdas do CDS-PP. Neste cenário, admite Luís Teixeira, os 
eleitores podem sentir-se mais tentados a abandonar um padrão de voto 
tendencialmente sincero e optar pelo estratégico "voto útil", em 
prejuízo do pluralismo e das correntes de opinião ainda representadas na
 sociedade. Esta é, de resto, uma das razões pelas quais vários 
académicos se opõem à criação de círculos uninominais que, dizem, 
acentuariam a bipolarização.
Um sistema, dois países
Como chegámos aqui? "É a demografia, estúpido", diria o outro. Não 
só, mas já lá vamos. Entre 2010 e 2014, Portugal perdeu 198 mil 
habitantes. Emigração e migração da província para as regiões costeiras 
resultaram em círculos eleitorais mais pequenos no interior e 
sobrelotados no litoral. Passos Coelho e José Sócrates, nascidos, de 
facto e para a política, longe da capital, "são exemplos públicos" dessa
 tendência, assinala o investigador Luís Teixeira.
Santarém, de onde partiu Salgueiro Maia para derrubar um regime onde 
as eleições eram uma farsa, perdeu quase oito mil eleitores em relação 
às Legislativas de 2011 e viu fugir-lhe agora um deputado para Setúbal. O
 parto da democracia "deu" 13 deputados ao distrito, mas a 
desertificação e os sucessivos atos eleitorais tiraram-lhe quatro. O 
mesmo acontece desde as primeiras eleições nas regiões com territórios 
mais afastados do mar: no conjunto, Vila Real, Bragança, Guarda, 
Coimbra, Viseu, Castelo Branco, Portalegre, Évora e Beja perderam 22 
mandatos.
Não é para deprimir, pois o pior ainda estará para vir. Segundo um 
estudo de institutos e universidades portuguesas, o interior do País 
perderá cerca de um terço da população até 2040, algo a rondar os 157 
mil habitantes. O diagnóstico incluído no Plano de Desenvolvimento Rural
 (2014-?-2020), elaborado pelo Governo, é ainda o túnel, não a luz. "A 
área suscetível à desertificação tem vindo a aumentar na última década, 
correspondendo atualmente a 58 % do território nacional", lê-se. É, 
pois, "expectável que se agrave face aos cenários de alterações 
climáticas". Para Paulo Reis Mourão, economista da Universidade do 
Minho, "estamos a assistir a siberização do interior. A população que 
vai resistindo é digna de comendas", reforça o autor do livro Economia 
sem Gravata (Chiado Editora).
O advogado belga Victor D´Hondt não tem culpa, mas parte das 
distorções e perversidades do sistema eleitoral é atribuída ao modelo 
que ele inventou. Criado para converter votos em mandatos, o método de 
Hondt já tem a "desvantagem" de dar um "bónus" aos maiores partidos, 
favorecendo a formação de maiorias e a sacrossanta "governabilidade". 
Mas, no atual cenário demográfico, acentua o fosso entre o interior e o 
litoral, distorcendo ainda mais a proporcionalidade entre eleitos e 
eleitores. Quanto menor o círculo, mais votos vão para o lixo. "O método
 de Hondt é o mais desproporcional de todos os sistemas proporcionais, 
mas foi adotado desde o início porque havia muitos partidos, um 
território mais equilibrado e era necessário estabilizar o País. Hoje 
tornou-se um problema. O Parlamento tentou uma reforma eleitoral em 
2002, mas desde então nada se fez", explica Luís Teixeira.
Acresce que os partidos de poder fazem das "maiorias" e da 
"estabilidade" um dogma. Negociação e compromisso, pelo contrário, são 
comuns no contexto europeu, onde governos de forças antagónicas levaram 
legislaturas até ao fim, conforme vem assinalando a investigadora 
política Conceição Pequito.
Estaremos a ampliar a "ditadura" da maioria e a dificultar ainda mais a representação eleitoral dos "sem voz"?
Isto mesmo está implícito numa carta enviada pelo matemático Paulo de
 Morais a Assunção Esteves, Presidente da Assembleia da República, em 
maio passado. Na missiva, o putativo candidato presidencial socorre-se 
de um estudo de José Matos e Pedro Vasconcelos, do Centro de Matemática 
da Universidade do Porto (dos mais antigos do País), para denunciar as 
perversidades do método de Hondt e sugerir a criação de um círculo 
nacional de compensação para corrigir as deficiências do sistema, 
nomeadamente os votos desperdiçados. 
"Considerando os resultados de 2011", escreve, "verifica-se que o PSD
 elegeu um deputado por cada 19.992 votos" e, no outro extremo, "o BE 
necessitou de 36.115 votos para cada deputado eleito". Como não é 
possível colocar eleitores no interior, "uma das soluções é criar um 
círculo nacional que permita pegar nos restos dos outros distritos e 
fazer justiça. Um voto no PCP em Bragança só por milagre elegerá um 
deputado, mas com este método contaria sempre", ilustra José Matos.
Quanto valem os eleitores?
O curioso é que não é preciso escalar o Evereste para atenuar os 
defeitos do sistema. As boas práticas estão a uma distância low-cost e 
falam a mesma língua, com sotaque.
Os Açores têm, desde 2006, um décimo círculo eleitoral de compensação
 dos votos desperdiçados nos outros nove. A mudança gerou maior 
proporcionalidade, "aumento do pluralismo e da representatividade 
partidária", segundo um estudo da politóloga Carmen Gaudêncio. 
Resultado: a CDU e o BE passaram a estar representados no parlamento 
regional.
Na Madeira, a criação de um único círculo, "faz com que os votos 
ignorados sejam, frequentemente mínimos", esclarece Luís Teixeira. Um 
exemplo: nas regionais de 2007, nenhum voto se perdeu, ou seja, "todas 
as listas que concorreram elegeram, pelo menos, um deputado".
Olhando para o mapa eleitoral do País abundam evidências de que a 
nossa ainda jovem democracia estará, parafraseando Conceição Pequito, 
com sinais de envelhecimento precoce.
Peguemos de novo no estudo de Luís Teixeira feito em exclusivo para a VISÃO, tendo por base as Legislativas de 2011.
Se em Lisboa, dada a dimensão do círculo eleitoral, os votos 
desperdiçados atingem uma percentagem suportável para a saúde da 
democracia (5,5%), noutras regiões já estamos no capítulo do escândalo. 
Os 19.303 votos ignorados em Portalegre, que elege dois deputados, 
correspondem a 32,5 % de eleitores sem qualquer influência na atribuição
 de mandatos.
Enquanto as 18.135 pessoas que votaram CDS-PP em Viana do Castelo 
elegeram um deputado, as 20.488 que escolheram o BE em Braga não 
elegeram nenhum, "integrando assim o vasto grupo dos eleitores não 
representados". Há dois países diferentes num raio de 63 quilómetros? 
Pior. "Há 22 categorias de eleitores em Portugal, cada qual com um peso 
específico, que varia de eleição para eleição e de círculo para círculo.
 Isto cria uma clara desigualdade", assume o investigador do Instituto 
de Ciências Sociais. "No panorama europeu, não é frequente encontrarmos 
um sistema eleitoral que tenha tantas discrepâncias", reconhece Marco 
Lisi, do Departamento de Estudos Políticos da Universidade Nova de 
Lisboa.
Aguenta mais um exemplo? Cá vai: enquanto os 62.610 votos do MRPP a 
nível nacional não elegeram qualquer deputado, os 51.518 votantes do PS 
em Leiria elegeram três. Com 42.622 eleitores nos Açores, o PSD elegeu 
outros três representantes. "Um círculo para todo o território nacional -
 e outro para toda a diáspora - resolveria este problema", crê Luís 
Teixeira. Bastaria adotar o princípio simples da igualdade de voto "que 
consiste em dar a todos os eleitores um igual peso numérico e um igual 
valor quanto ao resultado final", reforça o investigador. Propostas 
semelhantes vão nesse sentido.
Note-se o caso das sugestões incluídas no programa eleitoral do 
Livre/Tempo de Avançar às quais não será alheio o politólogo André 
Freire, candidato por Lisboa (ver caixa). "Será que para um jovem gay de
 Bragança, a representação de que se sente mais próximo é a do deputado 
de um dos dois grandes partidos que ganhou em Bragança ou da deputada de
 um círculo mais populoso, mas que luta pelos seus direitos?", 
interrogou-se, em artigo na E-Pública, revista eletrónica de Direito 
Público, o fundador do Livre, Rui Tavares, em reforço da tese do círculo
 nacional. O que aconteceria, então, à representatividade regional? 
"Se após as eleições, os grupos parlamentares se organizarem para 
atribuir a cada um dos seus deputados regiões especificas às quais devem
 dedicar mais atenção", o problema ficaria resolvido, até porque 
"sabemos que alguns já o fazem de sua iniciativa", desvenda Luís 
Teixeira.
Portugal de relance
Vai longe, porém, a memória de um idílio entre eleitos e eleitores, 
se é que alguém o detetou a olho nu. Já o Morgado de Fafe, criação 
literária saída da pena de Camilo Castelo Branco, topara a modorra 
parlamentar dos eleitos da nação. "O meu amigo, Sr. Leite, quando falava
 aos convívios populares, lá na nossa terra, falava pelos cotovelos. Mas
 isto cá, pelos modos, muda muito de figura", assinalara, irónico, ao 
amigo que, entrado nas cortes, se calara e deixara domesticar.
Paulo Reis Mourão, economista da Universidade do Minho, atualiza: 
"Quando Bruxelas manda mais do que o político e o eleitor é ultrapassado
 pelo burocrata, a representatividade está em causa e o cidadão 
desinteressa-se do processo eleitoral", resume. "Com a rarefação 
demográfica, os lugares elegíveis são preenchidos muitas vezes pelos 
piores, os que vão ficando nas terras e depois chegam ao Parlamento. Ou 
seja, os "Calisto Elói" desta vida. Estamos a assistir à queda de muitos
 anjos, não é?".
Numa obra coordenada por Marco Lisi, a publicar ainda este mês 
(Eleições Legislativas no Portugal Democrático 1974-2015), o 
investigador descobriu continuidades que não esperava: "Um traço que, 
pelos vistos, caracteriza a democracia portuguesa é a personalização das
 eleições. Não estava à espera que isto fosse assim desde 1976", admite,
 assinalando a inércia histórica dos partidos e eleitores, com reduzidas
 clivagens políticas.
A única rutura de dimensão considerável não frutificou. O PRD, criado
 em 1985, era um partido "formado por todos os homens bons das aldeias e
 vilas do País que aspiravam a entrar na política pela porta da moral e 
dos bons princípios", escreveu Miguel Sousa Tavares. Acabou em 2000, 
embora sem extinção formal, infiltrado por dirigentes de movimentos de 
extrema-direita, que mudaram a sigla e fundaram o PNR. A realidade, por 
vezes, ultrapassa a ficção, dispensando metáforas.
Estudos e sondagens internacionais, publicados de 2012 para cá 
(Eurobarómetro, European Social Survey, Estudo Europeu dos Valores e 
Inquérito Social Europeu), reforçam a ideia de que o desencanto dos 
portugueses em relação aos eleitos atingiu em cheio as instituições. 
Portugal é o País europeu mais insatisfeito com a democracia. No ano 
passado, só 20 % confiava no Parlamento e esse valor descia para os 11% 
no caso dos partidos. Em janeiro deste ano, apenas 17 % tendia a 
acreditar no Governo, mas o valor vem subindo desde 2013, tal como a 
confiança na Economia, na Justiça e na "situação financeira do lar". Os 
portugueses reclamam mais mecanismos de democracia direta e um 
funcionamento do sistema que permita "castigar maus governos" e os 
obrigue a explicar melhor as suas decisões aos eleitores. "Os partidos 
não são considerados pela maioria dos cidadãos os veículos adequados 
para representar as suas reivindicações", afirma Marco Lisi, que também 
deteta alguma esquizofrenia. "Os eleitores queixam-se que os partidos 
são todos iguais, mas ao mesmo tempo pedem compromissos. Isto não pode 
acontecer ao mesmo tempo".
Por outro lado, e segundo inquéritos já citados, este é ainda o País 
com "pouca abertura" à entrada de imigrantes dos países mais pobres, 
onde 22% dos seus habitantes rejeita homossexuais como vizinhos e um 
terço da população ainda acredita na existência do Inferno. Um dado dos 
diabos, mas o único em que podemos bater-nos de igual para igual com os 
suecos, que não ficam atrás na crença de contornos demoníacos. Estaremos
 a dar razão a Almada Negreiros, para quem o português, "como os 
decadentes", estava condenado à passividade, resignação, fatalismo, 
indolência e servilismo?
Os níveis de abstenção (41,1% nas últimas legislativas) e o número de
 votos em branco (mais de 148 mil) mais altos de sempre não auguram nada
 de bom. Mas calma. Conforme assinalou, no Público, o politólogo André 
Freire, uma luz, ténue, se vislumbra na escuridão do período pós-troika.
 Pelo menos ao nível da participação política. Na última década, com 
reforço considerável nesta legislatura, o número de petições cidadãs 
entregues na Assembleia da República superou expectativas: foram 1317, 
superando as 381 dos dez anos anteriores (1995 - 2005). Nos documentos 
chegados ao Parlamento há de tudo: propostas para a criação do dia 
nacional contra a homofobia, assinaturas contra a privatização da TAP e a
 favor da ida de Joaquim Agostinho para o Panteão. Convenhamos: não será
 ainda sinal de uma democracia cidadã a toda a velocidade, mas, pelo 
menos, pedala.   
Artigo completo em:   Visão.sapo.PT




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