Quem semeia ventos recolhe tempestades
Esta “coligação negativa” é a resposta à outra “coligação negativa”, a do PSD-CDS, que assim funcionou nos últimos quatro anos.
1. Quem semeou os ventos do modo como se respondeu
na Europa à crise financeira e bancária, dos produtos tóxicos e dos
bancos perto da falência recolheu a tempestade de uma “economia que
mata”. Os bancos foram salvos, pelo menos para já, mas o crescimento
estagnou ou andou para trás, as diferenciações sociais agravaram-se, o
desemprego cresceu exponencialmente, os salários baixaram, os direitos
laborais diminuíram, quando não foram extintos, as disfunções sociais
agravaram-se. Todas. Veja-se a “crise dos refugiados”, espelho do estado
da Europa.
2. Quem semeou os ventos da passagem
da crise tóxica dos bancos para a “crise das dívidas soberanas”, uma
invenção política alemã cujos efeitos perversos alargaram e aprofundaram
a crise nos países do Sul, mas também em França, recolheu um reforço do
poder de Merkel e Schäuble, o fim do directório com a França e o poder
único de Berlim e dos seus mais directos aliados, e uma fractura entre
duas Europas cujos efeitos estão apenas no início. A Europa já não é o
que era e muito menos é o que se desejava que fosse. É um poder cinzento
e duro, afastado de qualquer esperança e que serve para pôr na ordem
povos que se arrogam de querer outra coisa.
3. Quem semeou os ventos de uma Europa assente na política de Diktat,
de imposição de acordos cegos e desiguais, quem estiolou tudo à sua
volta, quem levou a Europa a abandonar regras democráticas, entregar os
poderes dos parlamentos nacionais aos burocratas de Bruxelas e aos
políticos de um Partido Popular Europeu cada vez mais conservador e à
direita recolhe fenómenos como a crescente sensação em muitos países de
que a sua soberania deixou de ter sentido e de que, com ela, se perde a
democracia que só a proximidade permite, o acentuar da crise profunda
dos partidos socialistas e da sua posição de mandaretes do PPE, e
efeitos como o do Syriza e a vitória, num dos mais importantes partidos
socialistas da Europa, de pessoas como Jeremy Corbyn.
4. Quem
semeou os ventos de uma ideia autoritária e antidemocrática do “não há
alternativa”, afastando do direito ao poder assente no voto todos os que
faziam parte de partidos e movimentos remetidos para o “inferno” de
estar fora do “arco de governação”, excluiu milhões de europeus que
votam “errado” de sequer terem o direito de poderem governar sem serem
sujeitos a humilhações, como aconteceu com os gregos e dividiu os
partidos como sendo de primeira (os que aceitam que “não há alternativa”
e fazem a política económica e social da direita) e de segunda,
centristas críticos da Europa, sociais-democratas, socialistas,
esquerdistas diversos, comunistas, excluídos da democracia, em que votar
não significa nada, porque estão “de fora” do euro e das “regras
europeias”
5. Quem semeou os ventos de que nada
há a fazer porque “não há alternativa” recolheu uma enorme instabilidade
dos sistemas políticos, com a perda muito significativa dos votos nos
partidos do “arco da governação”, mesmo que ainda estejam no governo,
uma crescente ingovernabilidade, e o ascenso de movimentos de
contestação do actual estado de coisas de natureza muito diferente.
Ainda não se deu uma clara ruptura, mas os partidos do “não há
alternativa” têm cada vez menos votos. E a abstenção cresce, assim como
várias manifestações de contestação do sistema democrático e da “classe
política”, e uma deslegitimação acentuada de governos, parlamentos,
partidos e presidentes.
6. Quem semeou os ventos
da arrogância, de um governo que não ouviu ninguém e não falou com
ninguém, que recusou qualquer entendimento com o PS na aplicação do
memorando, a não ser aqueles que se destinavam a dar caução às suas
políticas impopulares, que fez o que queria, muitas vezes na
ilegalidade, fora da Constituição e da lei, outras vezes na fronteira da
legalidade, que mais do que ninguém embateu em sucessivos vetos do
Tribunal Constitucional, que substituiu a boa-fé do Estado pela má-fé e
pelo dolo, que, sem hesitar, quebrou contratos com os mais necessitados,
ao mesmo tempo que lembrava a intangibilidade dos contratos com os mais
poderosos, quem transformou o fisco numa máquina sem lei que não
respeita ninguém (como antes Sócrates fez com a ASAE), quem acusou os
outros de serem “piegas”, de terem culpa por estarem desempregados, de
serem velhos do Restelo, antiquados e fora da moda do
“empreendedorismo”, quem dividiu velhos e novos, empregados e
desempregados, funcionários públicos e outros trabalhadores, quem mentiu
(e mente) descaradamente a todos sem pudor nem desculpa recolheu a
tempestade de um número significativo (e maioritário) de portugueses não
os querer ver nem pintados. A herança de radicalização que deixaram
dividiu como nunca o país e os portugueses e permitiu que uma parte
maioritária daqueles cujo único voto se pode somar – os que votaram
contra o Governo – sejam capazes de quase tudo para não os deixar
governar, mesmo correndo imensos riscos. O impulso que permite sequer
imaginar que possa haver um acordo PS-BE-PCP, uma mudança abissal da
vida política portuguesa, fechando quarenta anos de discórdia e
exclusão, não é sequer o da esquerda versus a direita, mas
apenas pura e simplesmente o de “nem pensar em vê-los lá de novo”. O PS,
que podia ter compreendido isto e ganhado as eleições, andou a pedir
licença para ser bem visto nos salões da coligação e obviamente
perdeu-as.
7. Para isso, estão dispostos,
insisto, a quase tudo e são de facto uma “coligação negativa”, o que
muitas vezes é mais seguro e sólido do que uma “coligação positiva”. E a
tempestade recolhida com os ventos da arrogância dos últimos anos é que
ninguém quer sequer admitir falar com ou permitir que o PaF governe,
mesmo sendo o partido mais votado, mas com o pequeno problema de que,
não tendo a maioria absoluta, não tem maioria nenhuma. É que esta
“coligação negativa” é a resposta à outra “coligação negativa”, a do
PSD-CDS, que assim funcionou nos últimos quatro anos. Se não houvesse
base constitucional para isto acontecer, seria quase um golpe de Estado,
mas, como há, não é. Tanto não o é que várias vezes vários políticos
eminentes da área do PaF a defenderam no passado contra Sócrates, por
exemplo, ou a exerceram na prática ao votar o PEC IV. Quem com ferro
mata com ferro morre.
8. Quem semeou os ventos de
uma governação agressiva e autista recolhe hoje a tempestade de ficar
isolado. O PaF tem legitimidade para governar, e admito que o Presidente
indigite Passos Coelho como primeiro-ministro, mas não existe qualquer
legitimidade para exigir que o PS permita que passe o governo ou o
Orçamento. Uma tem um sujeito (o PaF), outra tem outro sujeito (PS), e,
não havendo entendimento, a solução de um governo minoritário do PaF não
é viável. Não existe um direito divino ou exclusivo para que uma
coligação, mesmo tendo ganho, exija que os outros aceitem a sua
política, quando tem uma maioria contra. O Parlamento é um local de
geometria variável e, em democracia, cada peça dessa geometria move-se
como entende, com os riscos inerentes. Em teoria, a perda da maioria
absoluta não implica necessariamente que não se possa governar, como já
aconteceu no passado, mas também não implica actuar como se uma maioria
relativa fosse absoluta. A tempestade que a coligação recolheu foi fruto
de ter radicalizado de tal modo as fracturas da vida política
portuguesa que colocou PS, BE e PCP unidos contra ela, um feito único.
9.
Quem semeou os ventos de um governo que se comportou como uma
verdadeira “coligação negativa” recolhe a tempestade de uma outra
“coligação negativa”. O que move um lado e outro é, dito mais
prosaicamente e de forma plebeia, o “pó” que uns e outros reciprocamente
se dedicam. E não se pense que é apenas do lado PS-BE-PCP que há “pó”.
As coisas entre o ignorante e o absurdo que se dizem sobre os novos
bolcheviques que vêm aí com Jerónimo de Sousa com a faca na boca e
Catarina Martins de cabelo à norte-coreano, dos insultos do catálogo
completo contra António Costa e toda a gente que não alinha no discurso
dominante, esmagador, catastrófico, do “não há alternativa” ao PAF,
mostram que, a haver radicalismo, ele está bem representado dos dois
lados.
10. Pode fazer-se a pergunta mais retórica
e hipócrita: e Portugal? E os custos para Portugal? A pergunta é
hipócrita por só ter sido feita agora por aqueles que viram com
indiferença a destruição maciça de recursos e vidas, a arrogância do
poder, a incompetência e o favorecimento, a perda da independência muito
para além da presença temporária da troika cá, mas institucionalizando a troika
lá, sem nunca perguntarem por Portugal. Mas podem perguntar por
Portugal. Está mal, pode ainda ficar pior, mas aquilo a que assistimos
hoje não nasceu hoje – nasceu ontem.
Artigo completo: O Publico
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