domingo, 7 de agosto de 2016

Era uma vez Catarina

Muitos apostaram que não sobreviveria aos conflitos internos do Bloco de Esquerda. Afinal, protagonizou a maior vitória das eleições legislativas. Catarina Martins, a mulher-política do momento.
 
 
 
Não presumo sobre a bondade absoluta das minhas ideias. Mas não desisto delas." A frase é de 2007 e ficou registada numa entrevista ao pai, Arsélio Martins, que, diz agora à VISÃO, "podia ser um retrato da Catarina".
É verdade que dos pais não se espera nada menos do que elogios assim. Mas não é menos certo que a bloquista deixa essa impressão por onde passa. Mesmo quando, antes de ser eleita deputada, fazia dos palcos vida profissional.
Fez a antiga primeira classe em S. Tomé, onde os pais foram cooperantes, para mais tarde entrar em Direito, em Coimbra. Rapidamente mudou a agulha para as artes, no Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC). É aí que conhece o ator Nuno Cardoso, um dos elementos com quem viria a criar o grupo de teatro Visões Úteis, companhia hoje considerada uma referência artística no Porto.
Nuno e Catarina acabariam por seguir rumos diferentes, mas a deputada do BE manteve-se fiel ao seu estilo: "A recordação que tenho da Catarina é que sempre foi uma força da natureza. Determinada. Uma lutadora", conta o encenador.
A primeira candidatura ao Parlamento acontece em 2005, sem sucesso. Quatro anos mais tarde é eleita pela primeira vez, na altura ainda como independente.
 

Nem fofinha, nem Miss Universo

Dos primórdios da vida política da ex-atriz, Francisco Louçã recorda a promessa de "frescura e criatividade, aliada a uma grande sensibilidade social". Nada, porém, que lhe garantisse uma caminhada fácil. A primeira batalha foi a conquista do próprio partido: "Havia ceticismo dentro do Bloco de Esquerda em relação à Catarina Martins. Não era vista como uma figura determinante." De tal forma que ganhou por pequena margem a disputa interna, em 2014, contra Pedro Filipe Soares.
Como adverte Louçã, "ela aprende muito depressa". E, acrescenta o pai, não foi criada para ser Miss Universo. "Nem quisemos que os nossos filhos fossem conhecidos por serem fofinhos."
As palavras de Arsélio Martins, 67 anos, são todo um programa. Professor de Matemática na reforma, olha para a porta-voz do Bloco e revê, no seu caráter e postura, costuras da vida familiar e profissional. "Ela sofreu connosco todos os passos das nossas vidas, as condições duras do quotidiano", explica. Ou seja, "nunca foi protegida dos problemas. É um produto da escola pública, das dificuldades e do contacto com pessoas de estratos e proveniências diferentes. Mas deve tudo a si própria", refere o homem que, em 2007, recebeu o Prémio Nacional de Professores.
Arsélio e Rosa Amélia Martins, os pais, ajudaram a fundar o BE, mas deixaram a filiação há anos. No passado, foram militantes e ativistas de diversas organizações de esquerda radical, da OCMLP ao PCP (R), na clandestinidade e para lá das portas que Abril abriu. "A minha mulher mais resguardada, até porque não seria possível criar uma família com dois tipos que nunca estão em casa", assinala Arsélio. A família mudou muitas vezes de poiso, driblou perseguições, quis estar sempre nas organizações, movimentos e partidos onde as ideias pudessem ser "sempre um meio para atingir um fim. Caso contrário, não vale a pena", refere o pai da porta-voz do BE.
Catarina é, pois, depositária desta herança familiar e de biografias que não se escolhem. Um exemplo apenas: na casa dos avós paternos, em Nogueira da Regedoura (Santa Maria da Feira), foi assassinado pela PIDE, a rajadas de metralhadora, o tio-avô Carlos Ferreira Soares, "médico dos pobres". O corpo deste familiar, antigo militante do PCP, repousou, à sombra de uma japoneira, no cemitério local, ao qual sempre se deslocaram velhos camaradas, alguns vindos da Venezuela, deixando cravos na sepultura.

Subestimada, mas vencedora

Embora a política fizesse parte da vida familiar, nem todos seguiam a mesma linha partidária. Poderá vir daí a capacidade para negociar e criar consensos que lhe permitiu a liderança bicéfala com João Semedo, entre 2012 e 2014.
Criticado por muitos, pretexto de cisão para outros, o tempo de partilha de comando terá sido de grande aprendizagem para Catarina Martins. Mas, admite Jorge Costa, dirigente do Bloco, tornar-se porta-voz do partido "permitiu-lhe brilhar". E ser notada na fase dos debates da campanha. "Demoliu uma certa condescendência, entre o paternalista e o machista, que havia por ser mulher."
"Empatia" nas ruas, "rigor" nos debates foram, para Jorge Costa, os trunfos que permitiram a eleição de mais 11 deputados. Uma vitória celebrada por todas as razões, e mais uma: "O Bloco partiu para esta campanha com a imagem geral de um partido em estado comatoso". E chegou como maior grupo parlamentar alguma vez conquistado pelo BE.
Muito foi sendo aprendido para aqui chegar, recorda uma das deputadas mais seniores do grupo parlamentar, Mariana Aiveca: "A Catarina era muito discreta, mas fez um percurso sustentado. Inicialmente, perante o público, tinha altos e baixos. Reagia mais a quente. Depois foi ganhando endurance, amadureceu. Hoje transmite muita serenidade e robustez."
Os outros líderes políticos, critica Louçã, "cometeram a infantilidade de a subestimar".
Catarina saiu de casa dos pais, em Aveiro, aos 17 anos, levando uma bagagem cultural, política e cidadã de pedir meças. "Teve sempre uma grande liberdade de movimentos e meteu-se em tudo, da vida artística às associações, do Porto à Galiza, das prisões às zonas rurais", refere o pai. Foi, aliás, na condição de dirigente da associação dos profissionais das artes cénicas que Catarina negociou com os partidos. "Ela fez todos os embates possíveis. Já "morreu" várias vezes na vida, lidando com situações muito precárias. Nesses momentos racionaliza. Sabe fazer compromissos, sem perder de vista as suas ideias", atesta o pai.
Nos últimos dias, os progenitores estiveram por perto, em Lisboa, acudindo a um quotidiano agitado, com duas filhas de 9 e 13 anos, onde cabe um marido "sempre disponível para tudo" - Pedro Carreira, físico de formação, e ligado ao teatro -, além de uma vasta rede amiga e familiar (nas quais também entra João Martins, o irmão músico de Catarina). "Não nos metemos na vida dela, mas estamos sempre aqui", descreve o pai.
Fez-se no Parlamento. Marcou pontos nos debates eleitorais. Agora, aos 42 anos, Catarina Martins passa a representar a terceira maior força política na Assembleia da República.





Artigo completo em:   VISÃO







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