Era uma vez Catarina
Muitos apostaram que não sobreviveria aos conflitos
internos do Bloco de Esquerda. Afinal, protagonizou a maior vitória das
eleições legislativas. Catarina Martins, a mulher-política do momento.
Não presumo sobre a bondade absoluta das minhas ideias. Mas não
desisto delas." A frase é de 2007 e ficou registada numa entrevista ao
pai, Arsélio Martins, que, diz agora à VISÃO, "podia ser um retrato da
Catarina".
É verdade que dos pais não se espera nada menos do que
elogios assim. Mas não é menos certo que a bloquista deixa essa
impressão por onde passa. Mesmo quando, antes de ser eleita deputada,
fazia dos palcos vida profissional.
Fez a antiga primeira classe
em S. Tomé, onde os pais foram cooperantes, para mais tarde entrar em
Direito, em Coimbra. Rapidamente mudou a agulha para as artes, no
Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC). É aí que
conhece o ator Nuno Cardoso, um dos elementos com quem viria a criar o
grupo de teatro Visões Úteis, companhia hoje considerada uma referência
artística no Porto.
Nuno e Catarina acabariam por seguir rumos
diferentes, mas a deputada do BE manteve-se fiel ao seu estilo: "A
recordação que tenho da Catarina é que sempre foi uma força da natureza.
Determinada. Uma lutadora", conta o encenador.
A primeira
candidatura ao Parlamento acontece em 2005, sem sucesso. Quatro anos
mais tarde é eleita pela primeira vez, na altura ainda como
independente.
Nem fofinha, nem Miss Universo
Dos
primórdios da vida política da ex-atriz, Francisco Louçã recorda a
promessa de "frescura e criatividade, aliada a uma grande sensibilidade
social". Nada, porém, que lhe garantisse uma caminhada fácil. A primeira
batalha foi a conquista do próprio partido: "Havia ceticismo dentro do
Bloco de Esquerda em relação à Catarina Martins. Não era vista como uma
figura determinante." De tal forma que ganhou por pequena margem a
disputa interna, em 2014, contra Pedro Filipe Soares.
Como adverte
Louçã, "ela aprende muito depressa". E, acrescenta o pai, não foi
criada para ser Miss Universo. "Nem quisemos que os nossos filhos fossem
conhecidos por serem fofinhos."
As palavras de Arsélio Martins,
67 anos, são todo um programa. Professor de Matemática na reforma, olha
para a porta-voz do Bloco e revê, no seu caráter e postura, costuras da
vida familiar e profissional. "Ela sofreu connosco todos os passos das
nossas vidas, as condições duras do quotidiano", explica. Ou seja,
"nunca foi protegida dos problemas. É um produto da escola pública, das
dificuldades e do contacto com pessoas de estratos e proveniências
diferentes. Mas deve tudo a si própria", refere o homem que, em 2007,
recebeu o Prémio Nacional de Professores.
Arsélio e Rosa Amélia
Martins, os pais, ajudaram a fundar o BE, mas deixaram a filiação há
anos. No passado, foram militantes e ativistas de diversas organizações
de esquerda radical, da OCMLP ao PCP (R), na clandestinidade e para lá
das portas que Abril abriu. "A minha mulher mais resguardada, até porque
não seria possível criar uma família com dois tipos que nunca estão em
casa", assinala Arsélio. A família mudou muitas vezes de poiso, driblou
perseguições, quis estar sempre nas organizações, movimentos e partidos
onde as ideias pudessem ser "sempre um meio para atingir um fim. Caso
contrário, não vale a pena", refere o pai da porta-voz do BE.
Catarina
é, pois, depositária desta herança familiar e de biografias que não se
escolhem. Um exemplo apenas: na casa dos avós paternos, em Nogueira da
Regedoura (Santa Maria da Feira), foi assassinado pela PIDE, a rajadas
de metralhadora, o tio-avô Carlos Ferreira Soares, "médico dos pobres". O
corpo deste familiar, antigo militante do PCP, repousou, à sombra de
uma japoneira, no cemitério local, ao qual sempre se deslocaram velhos
camaradas, alguns vindos da Venezuela, deixando cravos na sepultura.
Subestimada, mas vencedora
Embora
a política fizesse parte da vida familiar, nem todos seguiam a mesma
linha partidária. Poderá vir daí a capacidade para negociar e criar
consensos que lhe permitiu a liderança bicéfala com João Semedo, entre
2012 e 2014.
Criticado por muitos, pretexto de cisão para outros, o
tempo de partilha de comando terá sido de grande aprendizagem para
Catarina Martins. Mas, admite Jorge Costa, dirigente do Bloco, tornar-se
porta-voz do partido "permitiu-lhe brilhar". E ser notada na fase dos
debates da campanha. "Demoliu uma certa condescendência, entre o
paternalista e o machista, que havia por ser mulher."
"Empatia"
nas ruas, "rigor" nos debates foram, para Jorge Costa, os trunfos que
permitiram a eleição de mais 11 deputados. Uma vitória celebrada por
todas as razões, e mais uma: "O Bloco partiu para esta campanha com a
imagem geral de um partido em estado comatoso". E chegou como maior
grupo parlamentar alguma vez conquistado pelo BE.
Muito foi sendo
aprendido para aqui chegar, recorda uma das deputadas mais seniores do
grupo parlamentar, Mariana Aiveca: "A Catarina era muito discreta, mas
fez um percurso sustentado. Inicialmente, perante o público, tinha altos
e baixos. Reagia mais a quente. Depois foi ganhando endurance,
amadureceu. Hoje transmite muita serenidade e robustez."
Os outros líderes políticos, critica Louçã, "cometeram a infantilidade de a subestimar".
Catarina
saiu de casa dos pais, em Aveiro, aos 17 anos, levando uma bagagem
cultural, política e cidadã de pedir meças. "Teve sempre uma grande
liberdade de movimentos e meteu-se em tudo, da vida artística às
associações, do Porto à Galiza, das prisões às zonas rurais", refere o
pai. Foi, aliás, na condição de dirigente da associação dos
profissionais das artes cénicas que Catarina negociou com os partidos.
"Ela fez todos os embates possíveis. Já "morreu" várias vezes na vida,
lidando com situações muito precárias. Nesses momentos racionaliza. Sabe
fazer compromissos, sem perder de vista as suas ideias", atesta o pai.
Nos
últimos dias, os progenitores estiveram por perto, em Lisboa, acudindo a
um quotidiano agitado, com duas filhas de 9 e 13 anos, onde cabe um
marido "sempre disponível para tudo" - Pedro Carreira, físico de
formação, e ligado ao teatro -, além de uma vasta rede amiga e familiar
(nas quais também entra João Martins, o irmão músico de Catarina). "Não
nos metemos na vida dela, mas estamos sempre aqui", descreve o pai.
Fez-se
no Parlamento. Marcou pontos nos debates eleitorais. Agora, aos 42
anos, Catarina Martins passa a representar a terceira maior força
política na Assembleia da República.
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